segunda-feira, 16 de maio de 2011

Por que assistir a Cinema Vale Sonhos?

Por Júnia Sales Pereira
Doutora em História – UFMG


Ernane Alves afirma-se, mais uma vez, como cineasta experiente. Tocante e justo, no longa Cinema Vale Sonhos, 2010, Ernane explora faces (in)visíveis da humanidade do Jequitinhonha, aproximando sua câmera de seus sujeitos e de seus/nossos sonhos. A câmera é quase um objeto em observação, perscrutada pelo encantamento de crianças. Com olhar sensível, ao mesmo tempo curioso, Ernane Alves captura e costura depoimentos capazes de enlaçar a dimensão existencial dos habitantes do Jequitinhonha à experiência humana universal: sonhos, enfrentamento e capacidade de compreensão ética face à dificuldade de manutenção da vida com hostilidade. Reunindo diferentes narradores, o filme permite que nos embalemos com as cantigas de roda e com o cuidado feminino com as coisas. Permite-nos compreender a poética do barro e a ética de pés descalços, numa ambiência de afirmação da continuidade da vida, do valor da criança e do idoso na encenação da cultura.
O barulho do carrinho de mão é quase um lamento, pano de fundo sobre o qual se exerce um filme encantador e finamente criado, convite ao pensar e urgir sonhos, encantamentos e dores. Convite a descobrir expressões do ausente/presente cultural e da miséria social, em meio à capacidade de auto-superação e da força de resistência de todos os homens, mulheres e sonhos do Jequitinhonha. Ernane fez tudo isso e muito mais, afirmou também a necessidade de preservação ambiental, de afirmação cultural e de cuidado para com a face profunda de Minas Gerais. Ouviu e fez encenar homens, mulheres, jovens, crianças e toda a paisagem que realiza a experiência social do Jequitinhonha, convidando-nos a viajar por cidades, paragens e almas feitas de barro, fé e hospitalidade. Ao roteirizar a simplicidade do Jequitinhonha, Ernane anuncia também de que forma é possível produzir cinema sem chavões, com doçura de olhar sensível, o cuidado com o tempo do depoimento nem sempre audível, mas sempre humanizador.
À narrativa reincidente da falta de trabalho e de estudo, confirma-se a força de pessoas capazes de simbolizar seus sonhos, com provocações sobre o futuro do Brasil e de sua infância, fazendo-nos experimentar a companhia de quem nunca foi ao cinema, mas que continua a sonhar em senti-lo. Na falta mesma do cinema, Ernane captura o seu sonho, o sonho do Brasil profundo de ser cada vez mais diverso, compreensivo e inclusivo, de um Brasil que se realiza com bom humor, sabedoria e alucinação. Um Brasil de contrastes, de anônimos Marias e Josés transformados em atores de uma narrativa feita de rudeza de palavras e pequenos-grandes sonhos.
Cinema Vale Sonhos é, assim, um libelo às crianças nascidas ao som de lamento, aos sonhos plantados em cada um dos jovens do Vale, dos que jamais viverão a experiência do cinema, mas que jamais perderão a capacidade de sonhar. Cinema Vale Sonhos faz ecoar em nós a possibilidade (po)ética do cinema, apresentando-nos um diretor-ator que descobre-se humano e mundano através de sua viagem. Revela-se, então, o olhar do diretor através de sua obra, um olhar transparente e sensível, convocando-os ao que é mundo e humano, sagrado e profano no universo dos sonhos.
A humana face de Ernane se pode ver em cada gesto de câmera, em sua paciência ao escutar o depoimento de pessoas tão tímidas e ao mesmo tempo tão sábias. A mundana face de Ernane se expressa no exercício da revelação do invisível, da captura do artesanato em chão de ruína, da tela em pouso nas mãos do artesão, na descoberta dos atos de palavra dos mestres da vida... Em tudo isso revela-nos Ernane a extrema potencialidade cultural que nasce e rebrilha a cada pouso seu sobre aqueles tantos Vales de Sonhos.
Cinema Vale Sonhos é, assim, obra auto-referenciada, ao revelar o alumbramento de seu diretor (também nosso) face à potencialidade do enraizamento cultural afirmado por homens e mulheres das Minas Gerais que, sendo também de Ernane, abrem-se em vida, morte e sonho: terra ancestral.

Pedro Leopoldo – MG, domingo, 15 de maio de 2011.

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